O autismo, também conhecido pelo nome Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), é uma condição de saúde que ocasiona déficit na comunicação social — socialização, comunicação verbal e não verbal — e no comportamento — como interesse restrito, hiperfoco e movimentos repetitivos. Recentemente inserido nas discussões sociais, algo que não acontecia com tanta frequência 30 anos atrás, por exemplo, o autismo conta hoje com uma data Mundial de Conscientização, celebrada neste sábado, 2 de abril.
As redes sociais estão cheias de homenagens, posts e conteúdo. A maioria com informações sobre diagnóstico em crianças ou até mesmo trazendo imagens da infância. Mas tem um outro lado da moeda que muitas vezes fica invisível aos olhos da população. Essas crianças crescem e, afinal, o que acontece com elas? Onde estão os autistas adultos? Recebem suporte passado os 18 anos? Estão inseridos e são vistos pela sociedade? Existem posts sobre eles na Internet?
Em Mato Grosso do Sul, a falta de políticas públicas e atendimentos especializados para adultos diagnosticados com TEA é evidente, impactando diretamente na vida das famílias. Vale ressaltar que existem diversos graus de autismo e cada indivíduo tem sua particularidade. Enquanto uns são severos, outros acabam sendo mais leves, possibilitando maior convivência com o meio social. Mesmo assim, nesses casos, o capacitismo continua presente.
Neste sábado, o Jornal Midiamax convida você a conhecer de perto a rotina, as dificuldades e a visão de uma pessoa autista que atingiu a fase adulta.
Autista sim! E com orgulho
Andressa de Andrade Pereira, de 36 anos, é diagnosticada com Síndrome de Asperger — condição que faz parte do Transtorno do Espectro Autista (TEA) — e também com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), nos níveis moderados. Essas características foram identificadas quando ela tinha quatro anos de idade, na escola. Na época, a família foi instruída a fazer o diagnóstico apenas na fase adulta. Foi então que, aos 25 anos, recebeu o laudo confirmando o TEA.
Ser uma pessoa autista com um grau moderado permitiu que ela conseguisse ser inserida nos meios sociais. Estudou na escola e, atualmente, cursa Pedagogia no ensino superior. Ao Jornal Midiamax, Andressa também afirmou ser a primeira autista a passar em concurso público em Corumbá, onde reside com a mãe, Fátima. Há três anos, Andressa trabalha como técnica da secretaria escolar da CAIC Pe. Ernesto Sassida, escola especializada no atendimento de alunos com deficiência.
Na hora de estudar, há também algumas adaptações. “Eu gosto de conversar, eu converso praticamente com todo mundo, com os alunos, os professores e geral no serviço […] eu sou bem querida pela turma, todas as dificuldades que eu tenho, as professoras e os próprios coordenadores me ajudam. No trabalho e na faculdade também”, disse Andressa.
Apesar de todo o seu desenvolvimento, ela afirma já ter passado por situações em que as pessoas não acreditavam na sua própria autonomia para trabalhar, estudar e afins. Mas, para ela, ser diagnosticada com TEA é uma honra.
“Várias pessoas perguntam: ‘Você é autista?’. Eu respondo: ‘sou e com muito orgulho‘”.
Fátima Aparecida Machado de Andrade, de 64 anos, é mãe de Andressa. Sempre inserida no meio acadêmico, incentivou os estudos da filha logo na infância com cursos e atividades extracurriculares. Para ela, essa dinâmica foi fundamental para canalizar as dificuldades da criança e transformá-las em conhecimento.
“Ela viveu como qualquer outra criança. Então ela estudou, fez a pré-escola, fez o ensino médio. Lógico, teve suas limitações, reprovava, mas fazia de novo. Nunca deixei ela parar de estudar […] dependendo do nível de gravidade das pessoas, dá muito bem para aproveitar, porque eles [autistas] são muito inteligentes”, conta Fátima.
Com autismo no nível moderado, Andressa consegue ser uma mulher independente. Trabalha, estuda, toma as próprias decisões e vai conquistar a graduação. Mas essa não é a realidade de todos com TEA, especialmente para aqueles casos severos e não verbais. Para esses adultos autistas, além de todas as dificuldades de convívio, enfrentam um outro agravante: a falta de instituições que atendem autistas acima dos 18 anos.
A invisibilidade dos autistas adultos
A invisibilidade dos autistas adultos pode se expressar em várias formas: desde autistas que nunca foram diagnosticados até a falta de suporte para as pessoas que atingiram a maioridade. Uma vez que o TEA está constantemente relacionado a crianças na mídia, faz-se questionar como elas vivem depois que ficam mais velhas.
“A assistência das associações se preocupa muito com crianças e até 18 anos, depois disso é cada um por si […] a faixa etária a partir dos 12 anos, quando entram na puberdade, começam as dificuldades e elas não param nos 18 [anos]”, afirma Carolina Spíndola, presidente da Associação que Defende os Autistas em Campo Grande.
A dona de casa Rosalina Benites, 51 anos, vive essa realidade de perto com o filho, Guilherme Benites Pinto, 20 anos. O jovem tem grau severo de autismo, com agressividade, agitação e episódios de epilepsia, além de ser totalmente dependente da mãe. Guilherme foi diagnosticado com hamartoma hipotalâmico [pequeno tumor benigno localizado no hipotálamo] aos dois anos de idade. Apesar de ter feito inúmeros tratamentos, cirurgias e uso de vários medicamentos, a condição ocasionou inúmeras disfunções no rapaz.
“Possivelmente foi isso [tumor] que trouxe o autismo. Isso é difícil de controlar. O atraso mental do Guilherme é bem grave, ele não conseguiu ler nem escrever. Porém, ele tem inteligência de outros lados. Ele tem boa percepção, ele não consegue falar bem, mas ele tem pronúncias das iniciais das palavras. ‘Mamãe’ e ‘papai’ ele fala muito bem, então ele tem, com a idade que está agora, bastante comprometimento com a fala, na socialização, no comportamento dele. Sempre foi difícil”, declarou Rosalina ao Jornal Midiamax.
Agora que Guilherme é adulto, com 1,67 metro de altura e 92 quilos, a dona de casa revela estar ainda mais difícil de controlar a agressividade sozinha. “Quando ele era criança, ele era muito ansioso, agitado, não parava um segundo, não sentava, eu corria atrás dele o tempo todo. Mas eu conseguia pegar, dar a mão, erguer no colo. Eu conseguia lidar melhor com ele”.
Na pandemia, a situação se agravou quando a ONG que ele frequentava fechou. Guilherme, então, ficou dois anos parado dentro de casa, sem terapia ou qualquer assistência. Até hoje, a família busca lugares especializados que possam atender o jovem. Porém, a idade dele está sendo o maior empecilho.
Ao Jornal Midiamax, Rosalina afirma que já buscou duas instituições especializadas no atendimento a autistas na Capital. Porém, enquanto uma não tem escolaridade para a idade do Guilherme, a outra já tem 400 crianças na fila de espera e segue sem vagas. Assim, a procura por um espaço continua.
“O que eu quero é o direito do meu filho […] nós precisamos que a autoridade, os políticos e governantes reajam, olhem por nós, olhem para as mães e famílias dos autistas, principalmente autista agressivo. Porque o que nós vemos nas redes sociais são aqueles autistas leves, que têm condições de sair, ir num mercado, de sair num ônibus. Mas nunca colocam aqueles agressivos, os severos igual meu filho e outros, a ponto de você ter que prender. Então esse é um grito de socorro”, se emociona Rosalina.
“O corpo cresceu, tem um corpo de homem”
A criação de Marco Aurélio Arsamendes de Arruda, 36 anos, também não foi nada fácil. Ele é autista severo, não fala, não tem mais os dentes e necessita de ajuda para atividades do dia a dia. Quem conversou com a gente foi o pai, Deir Ferreira de Arruda, 57 anos, desempregado. Marco nasceu já com convulsões, além de ter necessitado de fisioterapia para conseguir firmar o corpo. Por muitos anos, médicos não identificaram a sua condição.
“Durante sua infância era muito nervoso, com quadros de autoagressão graves, se mordia e mordia objetos, o que fez com que os dentes quebrassem, chegando ao ponto de atualmente não possuir mais dentes e depender de comida pastosa ou líquida. Os quadros de autoagressão e gritos o impediam de qualquer vida social. Quanto mais tomava remédios, pior ficava. Foi rejeitado em várias entidades por causa do quadro de instabilidade de autoagressão e gritos sem controle […] quando pequeno, todos achavam bonito ele pular, gritar, rodar objetos em copos fazendo barulho. Mas agora o corpo cresceu, tem um corpo de homem”.
Marco é 100% dependente. Precisa de ajuda para subir escadas, comer, tomar banho e exercer funções vitais da rotina. Agora que está adulto, o pai afirma ser cada vez mais difícil cuidar do filho por causa da força, do peso e da altura. Ao Midiamax, Deir revela que o maior obstáculo é a falta de tratamento multidisciplinar para autista.
“Hoje conto com apoio do Centro Dia Para Pessoas com Deficiências (PMCG), mas o que mais preciso é de terapias e tratamentos multidisciplinares pro Marco, que luto há anos para tentar conseguir. Um autista de 36 anos ainda está procurando tratamento multidisciplinar, esse é nosso Brasil. Como sempre digo: seu filho autista vai crescer e agora?”, diz Deir, angustiado.
Desempregado, ele largou tudo para conseguir cuidar do filho. A discriminação, então, vem de todos os lados.
“Não é fácil ser pai de um filho no espectro do autismo. Há momentos felizes, mas não se pode negar os desafios que os pais enfrentam e a carga que eles carregam. Os pais vivem em constante preocupação, lutam por serviços, sacrificam carreiras, afundam-se em dívidas e se revoltam com a injustiça disso tudo […] hoje estou doente, mas nada me afasta do meu amor pelo meu filho. Eu nunca vou te abandonar, meu filho”, conclui Deir, emocionado com o relato.
A importância do diagnóstico
Você já ouviu a frase discriminatória “não existia autistas antigamente” alguma vez na sua vida? Pensando em uma realidade de 30 anos atrás, quando pouco se falava sobre o autismo devido a inúmeros fatores — exclusão social, baixo investimento de pesquisas e falta de profissionais — especialistas indicam que grande parte dos adultos hoje com características do TEA nunca foram sequer diagnosticados.
Para a neuropsicóloga Paola Gianotto Braga, a falta de diagnóstico durante o período de desenvolvimento pode acarretar em várias consequências, como intensificação do quadro, inadequação social e potencialização das dificuldades.
Quando adultos com TEA de nível leve chegam ao seu consultório, as principais queixas estão relacionadas a instabilidades profissionais, dificuldades nos relacionamentos amorosos, preferência por atividades rotineiras e individuais, dificuldade em permanecer em locais ruidosos, não compreensão de regras e afins.
“Mesmo após adultos, quando o diagnóstico não acontece, a possibilidade de quadros depressivos e ansiosos serem instalados é intensa, causando sérios prejuízos em sua vida de maneira global, inclusive podendo levar ao abuso de substâncias psicoativas”, afirma a neuropsicóloga.
Estranhamento, rejeição e bullying
Nattalia Pompeo da Silva tem 35 anos sofreu bastante com a falta da análise. Ela trabalha como artista em Campo Grande e recentemente foi diagnosticada com TEA. Sem entender muito a sua condição durante o crescimento, por muitos anos buscou ajuda psicológica e psiquiátrica. No entanto, ela era vista com descaso e como se estivesse mentindo.
“A dor de viver me motivou, continuei insistindo, até encontrar a Carol, neuropsicóloga, que fez questão de acompanhar o caso”, disse Nattalia, que descobriu o Transtorno do Espectro Autista sozinha, em 2018, em meados dos seus 31 anos. Para ela, foi muito difícil passar a infância, adolescência e entrar na fase adulta sem nunca ter tido um diagnóstico ou acompanhamento adequado.
“Foi horrível, apanhava muito, estranhamento de todos, rejeição, bullying, solidão. Confusão por causa das pessoas, porque pra mim era tudo normal, amoroso, necessário, e desta forma, me isolei em 2010 até hoje”, recorda a artista.
Ela também afirma que as relações continuam fragilizadas, uma vez que as pessoas desrespeitam e banalizam o autismo. Apesar disso, conta com o apoio da namorada, especialmente agora que sua condição será acompanhada de perto por profissionais.
Diagnóstico e tratamento
O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais aponta a possibilidade de ter diagnóstico a partir dos 12 meses por meio de protocolos específicos.
Assim, segundo a especialista, um diagnóstico adequado envolve a realização de uma avaliação neuropsicológica seguida, minimamente, das avaliações com fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, e concluída pelo psiquiatra ou neurologista.
Quanto ao tratamento, a Paola afirma que varia de acordo com o grau e especificidade da pessoa.
“Quando necessário, a combinação entre os atendimentos com profissionais especialistas em TEA nas áreas da psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, junto a orientações e intervenções escolares em parceria com os educadores da educação especial, e o acompanhamento médico, é essencial”, conclui a neuropsicóloga.
Autismo: uma forma diferente de ver o mundo
Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, o Brasil pode ter mais de 2 milhões de pessoas com autismo. Onde estão essas pessoas? Como elas vivem? Por que elas são apenas pautas de discussão no dia 2 de abril? Falar sobre o assunto é imprescindível para propagar informação. E essa, por sua vez, tem grande poder transformador na conscientização.
No fim do dia, tudo o que os autistas querem, igualmente as suas famílias, é ser compreendidos. Os autistas adultos querem ser vistos, desejam receber tratamento e pedem por políticas públicas para a sua inclusão no meio social.
FONTE: MÍDIA MAX