Junto ao anúncio das chegadas de vacinas contra a covid-19 e à campanha de imunização, marcada para começar nesta semana, veio, também, uma enxurrada de novos casos e mortes pela doença no Brasil, subindo os patamares para o nível da primeira onda. Novas variantes do Sars-CoV-2, mais transmissíveis, aliadas ao afrouxamento drástico das medidas de distanciamento em razão das aglomerações de fim de ano trazem uma perspectiva ainda mais preocupante de como se dará o enfrentamento à pandemia, mesmo com a população sendo vacinada.
Infectologista do Hospital Sírio Libanês, Mirian Dal Ben lança luz sobre esses fatores e explica como eles podem interferir na chegada da chamada imunidade de rebanho, quando o número de pessoas já expostas ao vírus e com resposta imune é capaz de barrar a circulação da doença. Confira abaixo.
Imunidade de rebanho
Para imunidade de rebanho, a cobertura vacinal que precisamos atingir para ter uma situação confortável, sem ameaça de um surto e de uma pandemia, igual a gente tem, varia de doença para doença, de acordo com o potencial de transmissibilidade do vírus. Calculamos esse potencial de transmissibilidade do vírus através de um índice chamado R0, que é o número de casos secundários da doença, quando se coloca uma pessoa transmitindo dentro de uma população em que todos são suscetíveis ao vírus. Dando um exemplo, uma das doenças mais transmissíveis que nós temos é o sarampo, cujo R0 é de 12 a 18. Ou seja, uma pessoa transmite para 12 a 18 pessoas. No caso da covid-19, o R0 estimado está entre 3 e 6. Isso daria uma necessidade de ter que imunizar entre 70% e 80% da população para que a gente não tivesse o risco de ter esses surtos que estamos tendo e conseguir voltar a situação de normalidade que vivíamos antes.PUBLICIDADE
Novas variantes
A gente tem uma nova peça desse xadrez, que é a variante da covid. Embora ela não cause, a priori, casos clínicos mais graves, embora não tenha uma mortalidade aumentada, ela é mais transmissível. Estima-se que o R0 dela pode chegar até 8. Isso faz com que a imunidade de rebanho que a gente precise seja, talvez, ainda maior, mais próxima de 80% a 85%.
Manaus
Muito provavelmente, a imunidade que 76% das pessoas adquiriram não foi uma imunidade duradoura, e várias das pessoas que pegaram a covid-19 na primeira onda de Manaus já devem estar, de novo, suscetíveis, a ponto de pegar e transmitir a doença novamente.
Reinfecção
Já temos comprovações, na literatura, de casos de reinfecção. Já sabemos, até pelos dados do primo da covid-19, que é o Sars-CoV-1, que, muito provavelmente, depois de algum tempo, a imunidade vai embora. Então, funciona mais ou menos como a gripe. Quem já teve, precisa se vacinar.
PNI
Há bastante evidências de que, muito provavelmente, a covid-19 vai virar uma doença endêmica, que ficará circulando. Não dará surtos se conseguirmos atingir a cobertura vacinal necessária, mas será uma doença que vai continuar existindo e, portanto, deverá permanecer no Programa Nacional de Imunização (PNI).
Logística
Sabemos que já temos imunizantes disponíveis e que têm se mostrado eficazes, o que é ótimo. Mas, por enquanto, pela capacidade de produção dos laboratórios e pela capacidade de logística de aplicação da vacina, teremos uma campanha de forma faseada e, muito provavelmente, não vamos atingir essa imunidade de rebanho até o segundo semestre de 2021. A perspectiva, então, é que teremos que manter as medidas que diminuem a transmissibilidade, como uso de máscaras, evitar aglomerações e todos os protocolos de retomada.
Dose única
Nem que seja pensada a aplicação de uma dose, com a segunda apenas daqui a três meses. Provavelmente, não teremos a quantidade suficiente de imunizante para atingir imunidade de rebanho nestes primeiros meses. A estratégia de aumentar o intervalo, no entanto, é válida. Não unicamente para se galgar uma imunidade de rebanho, mas para proteger da covid-19 um número maior de pessoas com a primeira dose. Veja: Se eu tenho 200 doses da vacina, consigo imunizar 100 pessoas e garantir a segunda dose daqui a 28 dias. Se o percentual de eficácia for acima de 90%, então, garanto que mais de 90 pessoas desse grupo estarão imunes. Se, em vez de assegurar essas 200 doses para o grupo de 100 pessoas, eu vacinar, agora, 200 pessoas, e sair correndo atrás da produção de uma segunda dose para daqui a três meses, mesmo que a eficácia seja menor, na faixa de 70%, eu vou deixar 140 pessoas protegidas. É uma estratégia que protege mais gente nos próximos três meses, mas tenho que garantir que vai ter essa segunda dose para essas 200 pessoas ao fim desse intervalo, porque os estudos não validam uma distância maior.
Máscara
As vacinas se mostraram eficazes em reduzir a incidência de covid, sobretudo na gravidade. Ou seja, quem toma vacina tem menos chances de ter a doença com sintomas e tem menos chances de ter covid grave a ponto de precisar internar. No entanto, ainda não temos dados de que as vacinas diminuem a transmissibilidade do vírus. Isso quer dizer que, embora quem tome o imunizante fique protegido de ter a doença grave, a gente não sabe ainda se quem toma não pode contrair a infecção, de forma sintomática, para continuar transmitindo. Isso significa que ao tomar a vacina, isso não vai te dar um crachá dizendo que você não precisa mais usar máscara.
Aglomeração
Até que eu tenha cerca de 80% das pessoas protegidas contra o novo coronavírus, por meio da vacinação, quem receber a vacina vai ter que, mesmo assim, continuar com as medidas que diminuem a transmissibilidade. Isso é uma questão de humanidade. O fato de ter recebido o imunizante diminui a chance de a pessoa ter covid grave. Se ela for egoísta, pensar só nela, pode ser que queira começar a se aglomerar e sair sem máscara. Pensando no outro, ela tem que continuar cumprindo com as medidas.
FONTE: JORNAL BRAZILIENSE