Rachel Sturzenegger
Houve um tempo em que ser criança era sinônimo de ar puro e liberdade. Tempo para inventar mundos com bonecas e carrinhos, skates e bolas; para se perder em brincadeiras sem fim, apenas o prazer de ser criança. Hoje, as crianças estão cercadas de telas que orientam seus desejos e emoções. Robux, gemas, skins e avatares tornaram-se os brinquedos modernos, enquanto a infância analógica, com suas brincadeiras ao ar livre e contato direto com a natureza, parece ter ficado para trás.
O Dia das Crianças, tradicionalmente marcado por presentes e brincadeiras, precisa ser encarado como um alerta social. Devemos refletir sobre como nossas crianças estão vivendo a infância. O vício em jogos digitais revela um cenário preocupante: meninas e meninos da geração alpha enfrentam rotinas que antecipam responsabilidades cognitivas e emocionais. Muitos jogos incentivam objetivos complexos, competitividade e metas constantes, gerando ansiedade e frustração precocemente.
Embora a Organização Mundial da Saúde reconheça que apenas uma pequena parcela dos jogadores desenvolva gaming disorder, que é um transtorno comportamental caracterizado pelo uso excessivo de jogos digitais, o fenômeno merece atenção pública, pois não se trata apenas de saúde: é também um desafio social e comunicacional do nosso tempo. Estudos internacionais como o “Global Prevalence of Gaming Disorder: a Systematic Review and Meta-Analysis”, publicado em 2021, indicam que cerca de 3% a 4% dos jovens no mundo apresentam padrões de jogo compatíveis com o transtorno. Apesar de parecer uma proporção pequena, quando aplicada em escala global, este dado representa milhões de jovens. No Brasil, a pesquisa TIC Kids Online mostra que 24% das crianças têm acesso à internet antes dos 6 anos, ampliando a exposição precoce às telas. Além disso, inquéritos internacionais da UNICEF em parceria com a ITU (International Telecommunication Union) indicaram que um em cada três jovens já sofreu bullying online, revelando problemas nas formas de comunicação e na convivência que se estabelecem nesses ambientes digitais.
A aprovação recente do ECA Digital (Lei nº 15.211/2025) reforça a urgência de proteger nossas crianças. Essa legislação estabelece diversas obrigações para aplicativos, jogos eletrônicos e redes sociais, com o objetivo de tornar o ambiente online mais seguro. Entre as medidas previstas, destacam-se a verificação confiável da idade, a oferta de ferramentas de supervisão familiar e normas específicas para a publicidade direcionada a menores. Ao mesmo tempo, a Base Nacional Comum Curricular já define as competências e habilidades essenciais que devem ser desenvolvidas pelos estudantes em todo o país, incluindo educação digital e midiática.
Cabe às famílias exercerem a mediação ativa: estabelecer limites claros de tempo, e acompanhar o conteúdo consumido. Para as escolas, o desafio é incorporar a discussão sobre mídias e jogos no processo pedagógico, de modo a preparar os alunos para navegar em rede com segurança e responsabilidade. E, para a sociedade como um todo, trata-se de construir uma cultura em que as competências digitais não substituam, mas complementem as experiências de infância que envolvem imaginação, criatividade e contato humano.
Neste 12 de outubro, mais do que brinquedos ou presentes, as crianças brasileiras precisam de um ambiente seguro, tanto no físico quanto no digital, para poderem crescer, brincar e aprender sem pressões de um mundo adulto que insiste em antecipar etapas.
Rachel Sturzenegger é publicitária, especialista em Marketing e professora do Centro Universitário Internacional UNINTER.