Militares que integraram a equipe de fiscalização do processo eleitoral em 2022 pelo Ministério da Defesa confirmam que Walter Delgatti esteve na pasta para tratar sobre a segurança das urnas eletrônicas.
Dois integrantes das Forças Armadas que participaram do processo informaram à Folha, sob reserva, que o conhecido hacker da Vaza Jato esteve uma única vez na sede ministerial. Eles negam influência dele na confecção do relatório final da fiscalização.
A versão dos militares contraria a apresentada por Delgatti à CPI do 8 de janeiro, na última quinta-feira (17). Na ocasião, ele disse ter participado de cinco reuniões no Ministério da Defesa sob o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), recentemente condenado pelo TSE por mentiras e ataques ao sistema eleitoral, ficando assim inelegível pelos próximos oito anos.
Técnicos e integrantes do Ministério da Defesa confirmaram, sob reserva, que Delgatti foi ao prédio da pasta em 10 de agosto, uma quarta-feira. Estava acompanhado do assessor especial da Presidência Marcelo Câmara, que é coronel da reserva. Sua ida à pasta foi intermediada pelo então presidente Bolsonaro.
“A conversa foi bem técnica, até que o presidente me disse, falou assim: ‘Olha, a parte técnica eu não entendo. Então, eu irei enviá-lo ao Ministério da Defesa, e lá, com os técnicos, você explica tudo isso’”, disse Delgatti a deputados e senadores da CPI do 8 de janeiro.
À CPI ele disse que a campanha do ex-presidente planejou forjar a invasão de uma urna eletrônica durante as celebrações do 7 de Setembro de 2022, menos de um mês antes da eleição.
Como mostrou a Folha, ainda que fosse colocado em prática, o suposto plano relatado por ele à CPI não seria capaz de comprovar que as urnas eletrônicas e o processo eleitoral poderiam ser frágeis.
Especialistas em engenharia da computação consultados pela reportagem explicam que, caso concretizado, o plano teria no máximo um efeito para convencimento de um público leigo.
Segundo os relatos, o prédio da Defesa estava esvaziado quando ocorreu a visita do hacker.
Nove dos dez técnicos de informática da equipe das Forças Armadas estavam na sede do TSE para a análise do chamado código-fonte das urnas. Já o ministro da Defesa à época, Paulo Sérgio Nogueira, havia viajado a Belém (PA) após ter participado da Operação Formosa, no entorno de Brasília, pela manhã.
Delgatti chegou ao ministério com o coronel Câmara pelo subsolo do prédio, sem fazer registro na portaria. Na sequência, subiu ao oitavo andar e se encontrou com um dos técnicos que compunham a equipe de fiscalização.
A conversa demorou cerca de 20 minutos, segundo os relatos.
Na versão que circula entre os militares, o técnico da Força percebeu na conversa que Delgatti não conhecia o sistema eleitoral com profundidade e, por isso, não teria nada a acrescentar ao trabalho.
O ministro Paulo Sérgio Nogueira disse a interlocutores que não se encontrou com Delgatti em nenhum momento. O hacker, por outro lado, afirma tê-lo encontrado nesse período. O general avalia tomar medidas judiciais contra Delgatti, segundo relatos.
Os militares que participaram do processo de fiscalização ainda contestam a afirmação de Delgatti sobre a suposta influência do hacker na produção do relatório final dos trabalhos.
Eles contam, por exemplo, que a Defesa fez os primeiros questionamentos ao TSE em dezembro de 2021 e apresentou propostas de melhoria do processo eleitoral em março do ano seguinte.
A tese principal dos militares no relatório, a de que um código malicioso poderia inverter votos, foi apresentada publicamente em 14 de julho de 2022 -antes, portanto, da conversa com Delgatti.
Os oficiais das Forças ainda argumentam que os três principais apontamentos do relatório final só poderiam ter sido escritos por quem acompanhou o processo eleitoral completo.
São eles: possíveis riscos com o acesso dos computadores à rede do TSE durante a compilação do código-fonte, a baixa participação do teste de integridade com biometria e as restrições impostas à análise do código.
A última reclamação da Defesa, porém, não considerou o fato de os militares só terem pedido para checar o código-fonte às vésperas do término do prazo, sendo que o material ficou disponível para as entidades fiscalizadoras 12 meses antes da eleição.
A equipe das Forças Armadas que fiscalizou as urnas tinha dez integrantes: coronel Marcelo Nogueira de Souza (Exército); coronel Wagner Oliveira da Silva (Aeronáutica); coronel Ricardo Sant’ana (Exército); capitão Marcus Rogers Cavalcante Andrade (Marinha); capitão Helio Mendes Salmon (Marinha); capitão Vilc Queupe Rufino (Marinha); tenente-coronel Rafael Salema Marques (Aeronáutica); major Renato Vargas Monteiro (Exército); major Antônio Amite (Exército) e capitão Heitor Albuquerque Vieira (Aeronáutica).
Outros nove militares foram chamados para auxiliar na análise do código-fonte, mas não permaneceram no trabalho junto aos demais técnicos que produziram o relatório final da fiscalização.
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, pediu ao diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, que informasse detalhes da visita de Walter Delgatti ao Ministério da Defesa. O objetivo, segundo o ministro, é punir quem manteve contato com o hacker.
Em resposta, o chefe da PF disse que a investigação ainda não havia identificado quando nem com quem o hacker se encontrou. “Vamos apurar”, disse Múcio à Folha.
A atuação inédita das Forças Armadas na fiscalização das eleições foi utilizada por Bolsonaro para desacreditar o sistema eletrônico de votação e motivo para acirrar a crise entre o governo e o TSE.
Mesmo dizendo que agia de forma técnica e independente, o ex-ministro Paulo Sérgio repetiu as teses bolsonaristas para aumentar a desconfiança das urnas e encampou proposta rejeitada pelo Congresso para instituir a impressão do voto.
O relatório final da fiscalização dos militares não apontou fraude na eleição, apesar de reclamar de três partes do processo eleitoral. Os principais instrumentos para avaliar a confiabilidade do processo eleitoral foram utilizados pelos militares. A conclusão é que não foi identificada nenhuma divergência.