Trecho de hit de 2002 foi alterado em apresentação no programa Altas Horas, da TV Globo
Recentemente, o vocalista Toni Garrido apresentou ao público do programa global Altas Horas, uma nova versão da letra de Girassol, um dos maiores sucessos da banda Cidade Negra. No trecho originalmente estampado como “já que, pra ser homem, tem que ter a grandeza de um menino, de um menino”, a nova versão substituiu “menino, de um menino” por “menina, de uma mulher” — atitude que gerou repercussão cultural e questionamentos jurídicos.
Embora o cerne do debate se concentre no suposto teor machista da letra original, o episódio põe em evidência um aspecto menos discutido: quem pode alterar uma obra musical e sob que condições legais isso é permitido, especialmente quando a composição pertence não só ao vocalista, mas também a outros integrantes ou ex-integrantes da banda. No caso de Girassol, vale lembrar que não só Toni Garrido consta na lista dos compositores: Bino Farias, Pedro Luís, Lazão e Da Ghama também participaram da sua criação. Os dois últimos não fazem mais parte do grupo, referência no gênero reggae nacional.
Felipe Crisafulli, sócio do Ambiel Bonilha Advogados e especializado na área de Direito Desportivo e do Entretenimento, explica que a alteração de determinada frase de uma música não significa, por si só, violação a direito autoral de terceiro. “A Lei de Direitos Autorais estabelece ser direito moral do autor a modificação da obra, antes ou depois de utilizada. Porém, a própria lei prevê que, havendo coautores, todos eles exercerão, de comum acordo, os seus direitos sobre a obra intelectual. Dado que a música Girassol conta com diversos compositores, faz sentido a discussão se um deles poderia, isoladamente, alterar a letra – ainda que apenas em execuções ao vivo – ou não”.
De todo modo, a legislação de direito autoral impõe restrições a modificações unilaterais em obras protegidas. “Em regra, a alteração de uma canção musical só pode ocorrer com o consentimento de todos os titulares dos direitos envolvidos, especialmente quando se trata de parte fundamental da obra, como a letra (conteúdo literário/lírico). A ausência dessa autorização ou consenso entre os compositores pode configurar violação do direito de integridade da obra”, explica Victoria Dias, advogada do Ambiel Bonilha Advogados e especialista em Propriedade Intelectual.
Dias destaca que a criação de versões, adaptações ou arranjos não é proibida, mas deve respeitar os limites legais. “Enquanto a lei permite adaptações e arranjos técnicos justificáveis na execução, a mudança do conteúdo semântico da letra poderá ser considerada uma transformação da obra a exigir a anuência de todos os detentores dos direitos morais, mesmo que sejam ex-integrantes do grupo musical”, complementa a advogada.
Da Ghama se manifesta contra mudança na letra
A controvérsia reacende a discussão sobre os limites entre liberdade artística e proteção autoral. Após a adaptação da letra por seu ex-companheiro de banda no programa televisivo e a grande repercussão entre o público, Da Ghama expressou a sua discordância nas redes sociais. Em seu perfil no Instagram, o músico afirmou sentir-se incomodado e desrespeitado como compositor, reforçando que a mensagem da obra nunca foi “hétero machista”, mas sim o amor, respeito e positividade.
Crisafulli lembra que a lei confere aos autores de qualquer obra o direito moral de assegurar a integridade desta, opondo-se a modificações ou à prática de atos que, de alguma forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, enquanto autor, em sua reputação ou honra. “A questão, portanto, passa pela análise se a alteração promovida por Toni Garrido causa algum demérito, depreciação ou vulgarização à obra e/ou aos demais autores desta. Trata-se, sem dúvida, de algo subjetivo, e que, a princípio, apenas os próprios compositores da música poderão perceber. Em termos práticos, não configurados tais prejuízos, nenhuma indenização aos coautores ou qualquer outro tipo de consequências deverá surgir no caso concreto”.
Ao mesmo tempo que protege os autores de modificações em suas obras artísticas e intelectuais, a Lei de Direito Autoral autoriza a realização de paráfrases e paródias, respeitados os limites da própria legislação. Assim, se a letra da música, ainda que modificada sem prévio e expresso consentimento dos demais compositores, não é utilizada ou divulgada de modo absolutamente diverso, contrário ou prejudicial ao que concebido pelos coautores, a situação poderá ser caracterizada como paráfrase – maneira diferente de se expressar algo que já foi dito, sem que se altere o significado da versão anterior ou original.
“O art. 47 da Lei nº 9.610/1995 estabelece serem livres as paráfrases e paródias, desde que não correspondam a verdadeiras reproduções da obra originária, nem causem descrédito à obra. Nessas circunstâncias, não se está perante violação à intangibilidade da obra, capaz de ensejar reparação por danos morais”, esclarece Crisafulli.
No caso de Girassol, mais do que avaliar se a modificação em apenas uma frase da letra da música é suficiente a caracterizar adaptação ou transformação da obra, relevante será entender se a nova versão implica alteração significativa no sentido da mensagem. “O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já salientou que, não sendo a letra original utilizada como mote para desenvolvimento de outro pensamento, não se está diante de uma paráfrase”, acrescenta Crisafulli.
O episódio mostra que uma decisão aparentemente motivada por simples ajuste estético ou social, em um programa de grande repercussão, pode desencadear uma série de discussões jurídicas – e, quiçá, disputas judiciais –, quando realizada sem a prévia e expressa autorização de todos os coautores. Isso porque qualquer um deles pode se sentir ofendido em seu direito moral de integridade – que assegura a preservação da essência e da autenticidade da obra intelectual. “Vivemos um momento em que o mundo como um todo, e a arte em específico, é revisitado à luz de novas pautas sociais. Isso é saudável, mas é preciso ter-se atenção ao que a lei estabelece. Caso contrário, o que se apresenta como evolução pode se transformar em litígio e grande confusão”, analisa Dias.
Mais do que uma questão cultural, o episódio reforça a necessidade de diálogo entre o Direito e a música. As obras autorais, ainda que populares, são protegidas como patrimônio intelectual e emocional de seus criadores. A alteração de uma canção consagrada sem o consenso dos coautores originais abre precedente delicado, capaz de inspirar novas reflexões sobre o respeito à criação artística e seus limites legais.
Fontes:
Felipe Crisafulli – sócio do Ambiel Bonilha Advogados, especializado na área de Direito Desportivo e do Entretenimento e doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal).
Victoria Dias – advogada do Ambiel Bonilha Advogados, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Propriedade Intelectual, Direito do Entretenimento, Mídia e Moda pela ESA/OAB.