Entre 2019 e 2025, o número de Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) passou de 42 para 88
O monitoramento sobre as pressões e ameaças às terras indígenas na bacia do rio Juruena mostra o acelerado avanço de projetos hidrelétricos na região, com potenciais impactos sobre os territórios e modos de vida dos povos originários. O estudo, divulgado neste mês e assinado pela equipe da Operação Amazônia Nativa (OPAN), detalha um cenário de intensa concentração de empreendimentos, predominantemente Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs).
A análise, que abrange o período de janeiro de 2024 a julho de 2025, identificou um total de 185 aproveitamentos hidrelétricos na bacia do Juruena. Desses, 48% são CGHs e 39% são PCHs, evidenciando uma clara inclinação para projetos de menor porte, que, apesar da escala, não deixam de impor riscos significativos. O estudo aponta que 66% dos empreendimentos ainda se encontram na fase de planejamento, indicando um potencial de crescimento hidrelétrico considerável para os próximos anos.
Um dos pontos de maior preocupação é o crescimento das CGHs, cujo número na bacia mais que dobrou entre 2019 e 2025, saltando de 42 para 88 unidades. Essa expansão acelerada é diretamente associada à simplificação dos trâmites regulatórios promovida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2020, que dispensou esses empreendimentos de estudos mais aprofundados, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). Em vez disso, as CGHs frequentemente se submetem a um Relatório Ambiental Simplificado (RAS), considerado mais superficial e insuficiente para avaliar os riscos socioambientais em áreas sensíveis.
Rios mais ameaçados
O estudo mostrou que a sub-bacia do Papagaio tem o maior número de empreendimentos em fase de planejamento (42) e concentra sequências de PCHs ao longo do rio Sacre. Essa disposição em cascata gera preocupações sobre a conectividade hídrica, a migração de espécies aquáticas e, consequentemente, os impactos sobre os povos indígenas que dependem desses ecossistemas para sua subsistência e cultura.
“O relatório mostra a celeridade preocupante no licenciamento de CGHs. Por exemplo, as CGHs Janeque e Santa Cândida, na sub-bacia do Papagaio e localizadas no rio Buriti, próximas a Terras Indígenas, obtiveram as Licenças Prévia (LP) e de Instalação (LI) em intervalos extremamente curtos”, ressaltou o indigenista e geógrafo Cristian Felipe Rodrigues Pereira.
O ritmo acelerado levanta sérias dúvidas sobre a profundidade das análises ambientais e, crucialmente, sobre a efetividade da consulta às comunidades indígenas, um direito fundamental garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Essa situação contrasta com o tempo necessário para que as comunidades indígenas realizem seus próprios processos de deliberação coletiva, comprometendo o direito à consulta prévia, livre e informada”, avalia a advogada Mariana Lacerda.
Outro ponto crítico apontado é a dispensa de EIA/RIMA para a PCH Cristalina, localizada no rio Juruena. Este empreendimento está inserido em uma área com outros 20 projetos hidrelétricos, e a ausência de um estudo abrangente de impacto ignora os efeitos cumulativos e sinérgicos na região.
Quando o peixe falta
O estudo ressalta que povos como os Enawene Nawe já sofrem com a escassez de peixes, um problema que afeta não apenas a alimentação, mas também aspectos fundamentais de sua espiritualidade, como a realização do ritual Yaõkwa.
O ritual, reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) e pela Unesco, encontra-se sob ameaça devido à redução de peixes no rio Juruena. O Yaõkwa, que se estende por aproximadamente sete meses, é fundamental no calendário cerimonial do povo Enawene Nawe, entrelaçando dimensões sociais, culturais, espirituais e ecológicas. Durante sua realização, os Enawene Nawe estabelecem uma conexão com os espíritos subterrâneos Yakairiti, oferecendo alimentos essenciais como peixe, sal vegetal, milho e mandioca, numa busca contínua pela manutenção da ordem cósmica e social.
A plena execução do Yaõkwa depende da saúde dos rios e da presença de peixes migratórios, uma vez que a pesca coletiva de barragem é um componente do rito. Contudo, desde a instalação do Complexo Energético do Juruena – composto por oito PCHs das empresas Bom Futuro e Amaggi –, iniciado em 2007, os Enawene Nawe têm testemunhado um declínio acentuado na abundância de pescado. Espécies antes comuns, como piau, pacu, matrinxã, jaú, pintado e cachara, tornaram-se raras, impactando severamente não só a dieta alimentar tradicional, mas também a continuidade de seus rituais sagrados.
“Diante dessa carência, os Enawene Nawe têm sido forçados a adquirir peixes de tanques e represas para a manutenção dos rituais, sendo que a pesca coletiva de barragem é um dos principais componentes do rito. Esta situação evidencia não apenas os danos ambientais causados pelas hidrelétricas, mas também a fragilidade das medidas de compensação e salvaguarda cultural frente à magnitude dos grandes empreendimentos”, afirma o indigenista Ricardo Carvalho.
Dados do estudo
A metodologia do boletim envolveu a coleta e análise de dados de fontes públicas como a Aneel, Diários Oficiais (DOE e DOU), o Sistema Integrado de Monitoramento e Licenciamento Ambiental (Simlam) e o Geoportal de Mato Grosso. A análise territorial por sub-bacia hidrográfica permitiu identificar padrões de concentração e ritmo de implantação dos projetos, revelando que as sub-bacias do Papagaio e do Rio do Sangue concentram grande parte dos empreendimentos em fase de planejamento.
O estudo também alerta para um cenário de crescente pressão sobre as terras indígenas na bacia do Juruena, impulsionado pela expansão hidrelétrica. A agilidade nos licenciamentos, a potencial subestimação de impactos e a fragilização do direito à consulta prévia são pontos que demandam atenção urgente de órgãos ambientais, do poder público e da sociedade civil para garantir a proteção dos territórios e dos direitos dos povos indígenas.
A dinâmica de avanço dos empreendimentos hidrelétricos na bacia do Juruena, impulsionada pela simplificação regulatória para CGHs, também chama a atenção e aponta para um futuro com consolidação de grandes usinas.
Conforme o estudo, os impactos sinérgicos e cumulativos sobre os ecossistemas aquáticos já são evidentes, com redução da superfície de água e crescimento expressivo de áreas irrigadas. Para mitigar esses efeitos, recomenda-se a adoção de instrumentos como a Avaliação Ambiental Integrada (AAI), o fortalecimento dos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs), visando a um planejamento e gestão mais sustentáveis dos recursos hídricos. Além da construção de um Plano de Recursos Hídricos específico para a bacia do Juruena para orientar um uso justo, eficiente e equilibrado da água na região.
Acesse o estudo completo sobre pressões e ameaças às Terras Indígenas na Bacia do Rio Juruena aqui: Link: https://amazonianativa.org.br/pub/boletim-de-pressoes-e-ameacas-as-terras-indigenas-na-bacia-do-rio-juruena/