A Rússia e a Coreia do Norte assinaram nesta quarta (19) um acordo de parceria estratégica, inédito no pós-Guera Fria, que prevê assistência mútua em caso de um dos países sofrer uma agressão e cooperação militar profunda.
O pacto, firmado durante a propalada visita do presidente Vladimir Putin ao ditador Kim Jong-un, abre caminho para maior apoio de Pyongyang aos esforços de guerra russos na Ucrânia e tem o potencial de alterar o balanço geopolítico na península coreana.
Assim, é desenhado para atingir diretamente os Estados Unidos, maior apoiador tanto de ucranianos quanto de sul-coreanos. Desde a divisão da península, firmada no armistício de 1953 entre norte comunista e sul capitalista, Washington é a garantidora de Seul em caso de conflito.
“De acordo com o artigo 4º do tratado, há uma acordo para prover assistência mútua no evento de uma agressão contra qualquer uma das partes”, disse o chanceler russo, Serguei Lavrov. “A Rússia não descarta cooperação técnico-militar com a Coreia do Norte”, descreveu antes a agência Tass, usando o jargão de Moscou para transferências de armamentos e tecnologia bélica.
O presidente russo havia dito que sua visita era uma prova da soberania norte-coreana ante a “ditadura neocolonialista hegemônica” promovida pela Casa Branca. Ele foi recebido, em sua primeira viagem a Pyongyang em 24 anos, com uma festa encenada nas ruas da capital norte-coreana, com milhares de moradores soltando balões e com um show diurno de fogos de artifício.
Os EUA e a Otan, aliança militar liderada pelos americanos, passaram dias denunciando a visita como uma desculpa para Putin obter mais armamento simples de Kim, basicamente munição para artilharia e mísseis balísticos, em troca de conhecimento para o lançamento de satélites e talvez para projéteis mais avançados.
Kim voltou a defender a visão russa na guerra na Europa, iniciada por Putin em 2022. “A Coreia do Norte expressa seu pleno apoio e solidariedade ao governo, ao Exército e ao povo russo”, disse. Após duas horas de negociações, ofereceu uma recepção de Estado para o russo na capital Pyongyang, na qual o chamou de “o mais querido amigo do povo coreano”.
“Neste momento, em que o mundo todo está prestando atenção a Pyongyang, onde uma missão de amizade da Rússia chegou, eu me coloco ao lado dos meus camaradas russos, nosso mais honestos amigos e camaradas”, disse Kim, voltando à retórica da Guerra Fria, quando a dinastia stalinista fundada por seu avô surgiu das cinzas da ocupação colonial japonesa da península.
Como seria previsível, o Kremlin disse que o pacto tem natureza defensiva. “Virtualmente tudo que eles [o Ocidente] fazem, de um jeito ou de outro, é direcionado contra nós. E nós, ao contrário, estamos construindo relações. Não contra ninguém, mas para nosso benefício, dos dois países. A cooperação russo-coreana não é voltada contra terceiros países”, disse o porta-voz Dmitri Peskov.
Se o acordo militar era esperado, até porque Putin lançou um exercício aeronaval na região no mesmo dia da viagem, o elemento claro de proteção mútua entre duas potências nucleares, uma com o maior arsenal do mundo (5.580 ogivas segundo a Federação dos Cientistas Americanos) e outra, com 50 bombas e uma miríade de mísseis para lançá-las, pegou o Ocidente de surpresa.
No ano passado, Joe Biden renovou tal aliança, que mantém cerca de 25 mil soldados americanos a serviço de Seul, dando aos sul-coreanos voz no planejamento do eventual emprego de armas nucleares contra o Norte. O presidente fez ameaças diretas de aniquilar o regime de Kim, que de lá para cá só intensificou seus testes de mísseis.
Tal arranjo foi denunciado por russos e chineses, e agora parece que chegou a hora do troco, abrindo uma fronteira nova de atrito agudo entre Moscou e o Ocidente.
Isso dito, até agora causa impressão o silêncio de Pequim, a principal aliada de Putin, acerca do pacto com Kim. Os chineses são responsáveis por 90% do comércio com a Coreia do Norte, mas mantêm uma posição mais flexível na região, temendo repercussões sobre sua economia altamente integrada à do Ocidente.
Na terça (18), ocorreu a primeira reunião ministerial para discutir segurança regional, na capital sul-coreana. A rodada foi acertada no mês passado durante encontro entre o presidente Yook Suk Yeol, um ativo anti-norte-coreano, e o premiê chinês, Li Qiang.
Como Putin mantém estreita relação com Xi Jinping, tendo visitado o chinês recentemente, é difícil imaginar que a ditadura asiática não estivesse a par dos planos de trazer Kim para o centro do tablado da Guerra Fria 2.0 -que colocou Rússia e China no polo antagonista ao dos EUA.
A opacidade usual da política em Pequim, contudo, demandará tempo para entender o que de fato ocorreu, já que não se pode descartar que Xi deu aval ao russo a assumir um papel que não quer para si. Por ora, restam as palavras bombásticas de Pyongyang.
“As relações entre nossos países estão entrando em uma nova era de grande prosperidade que é impossível comparar até mesmo com o período das relações soviético-coreanas do século passado”, situou Kim, chamando a cooperação atual de aliança.
Em 1961, os países assinaram um pacto semelhante, que foi diluído em 2000 com uma roupagem de aliança comercial. Ao longo da Guerra Fria, soviéticos e chineses dividiram o apoio aos norte-coreanos, mas o ocaso do império comunista de 1991 deixou o trabalho para Pequim.
Os russos mantiveram boa relação com Pyongyang, mas ela esfriou, e Moscou votou nove vezes em favor de sanções contra o aliado no Conselho de Segurança da ONU.
Com a renovada tensão geopolítica a partir do colapso das negociações entre EUA e Coreia do Norte, em 2018, e a invasão da Ucrânia, os países se reaproximaram. Isso foi coroado pela visita de Kim ao Extremo Oriente russo no ano passado.
Agora, Putin seguirá viagem ao Vietnã, país que já recebeu recentemente tanto Xi quanto Biden.
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