Solitárias, sobrecarregadas e desconectadas da própria identidade. Mas, paradoxalmente, seguras de sua saúde mental, mais abertas a dividir tarefas e felizes – ou, ao menos, reconhecendo ter seus momentos de felicidade.
Pode parecer contraditório, mas é justamente este mosaico de sentimentos aparentemente opostos que melhor descreve o que é ser mãe. Foi o que indicou um levantamento realizado pela plataforma mineira Mommys, apresentada como um espaço de ajuda mútua com a missão de tornar a maternidade mais leve.
Realizada em abril deste ano, a pesquisa aborda questões relacionadas à saúde mental e ao autocuidado por meio de um questionário, respondido por 505 mães integrantes do Mommys – que, atualmente, reúne cerca de 10.500 membros em um grupo no Facebook. Em sua maioria, essa comunidade materna é formada por mulheres de 30 a 45 anos que vivem em Belo Horizonte ou em cidades da região metropolitana. Das participantes, a maioria tem um (41%) ou dois filhos (47,9%) e a minoria tem três (9,3%) ou mais de quatro crianças em casa (1,8%).
Nas respostas, a maior parte das mães (80,5%) afirma que após a maternidade passou a se sentir mais sozinha, permanentemente (45,3%) ou às vezes (35,2%), e que viu suas amizades mudarem (72,9%).
A sensação de solidão atravessa também outros aspectos apurados no inquérito. É o que se percebe ao constatar que, apesar de boa parte delas (73,7%) afirmar dividir os cuidados dos filhos com outra pessoa, elas seguem lidando, sempre (47,7%) ou às vezes (42,2%), com a sensação de sobrecarga, além de se sentirem culpadas em algum nível – como dito por 84,2% das mulheres ouvidas.
“É um dado que nos faz refletir se essa divisão de tarefas é mesmo efetiva, além de apontar para a forma desigual como homens e mulheres são cobrados em relação ao cuidado com os filhos”, assinala Mariana Bicalho, fundadora da Mommys, lembrando que, como em pesquisas anteriores, o problema aparece também na forma de exaustão: 98,8% das mães se sentem cansadas, permanentemente (59,6%) ou às vezes (39,2%).
Desconfiança
“A gente fala muito hoje de parentalidade, ressaltando que os pais são corresponsáveis pela criação de suas crianças. Mas, claro, precisamos lembrar que, histórica e culturalmente, o cuidado sempre foi atribuído mais à mulher, enquanto, ao homem, cabia apenas prover. É uma lógica com a qual ainda convivemos”, sublinha a mentora de mães, Mariana Bicalho.
Um sinal de como esse pensamento segue arraigado e recorrente foi percebido por Mariana durante uma roda de conversa sobre rede de apoio. “Na atividade, realizada pelo Mommys, muitas das participantes disseram não confiar em seus parceiros porque achavam que eles não saberiam cuidar de seus próprios filhos”, destaca, sublinhando a urgência de se romper com esses estereótipos – “o que só vai ser possível a partir de mais conversa e mais compartilhamento de responsabilidades”, diz.
O problema se agrava, contudo, porque essa falta de entrosamento e companheirismo impacta, também, a disposição dessas mulheres em falar mais abertamente sobre suas experiências pessoais com aqueles com quem estão se relacionando ou tiveram uma relação. No caso, 31,5% das que participaram do levantamento preferem ter essas conversas com outras mães e, 27,9%, com amigas, enquanto apenas 13,3% optam por falar sobre a maternidade com seus parceiros.
Perda de identidade
Mariana Bicalho explica que, desde a pandemia da Covid-19, vem realizando pesquisas periódicas para entender como está a saúde mental das mães que integram a comunidade Mommys. “É algo que nos ajuda a direcionar ações entendendo o que é mais urgente naquele momento”, diz. Na atual edição, um dos principais achados diz respeito à sensação de perda de identidade que aparece recorrentemente nos relatos dessas mulheres.
No total, 71,1% das respondentes reconheceram conviver com uma espécie de perda de identidade, em algum nível, após a maternidade, e 64,3% admitiram se sentir desconectadas de si próprias. Essa realidade é perceptível na fala de mães ouvidas pela reportagem de O TEMPO na tarde de segunda-feira (15), na praça Sete. Questionadas sobre um desejo seu que gostariam de realizar, a maioria das entrevistadas deixou de falar sobre os seus próprios sonhos para dizer sobre os projetos de seus filhos.
A manicure Gisele Aparecida Vieira, 35, por exemplo, quer ver seu adolescente superando o vício em drogas. Já a aposentada Elita Andrade, 62, anseia ter condições de dar mais conforto para os filhos – “o que eu não pude fazer depois de ser viúva”. Desejo semelhante é manifesto pela doméstica Marinalva Feitosa, 47, que sonha em ter melhores condições para, assim, ajudar os seus, enquanto a operadora de caixa Michele Emília, 49, deseja saúde – mas não para si, e, sim, para os filhos.
Saúde mental
Fazendo contraponto a essa sensação de solidão e perda de identidade, pouco mais da metade (53,3%) das mães que integram o Mommys – e, portanto, estão mais familiarizadas a debates abertos sobre os dilemas da maternidade na contemporaneidade – diz ter algum passatempo. Elas também se esforçam para manter momentos dedicados a elas mesmas, seja uma vez por semana (32,5%), uma vez ao mês (6,5%) ou esporadicamente (31,7%). Nessas horas, o que mais querem é descansar, sair com as amigas, viajar ou fazer algum programa com seu parceiro ou parceira, respectivamente.
O inquérito realizado pela plataforma Mommys aponta ainda que, apesar do cenário desafiante, solitário e exaustivo, a maioria dessas mães avaliam a própria saúde mental como boa (56,4%) ou muito boa (7,9%). Cerca de um terço, porém, acredita que não vai tão bem neste quesito. Majoritariamente, elas também dizem se sentir felizes (49,1%) ou, ao menos, ter momentos de felicidade (45,9%).
Em relação a fazer algum tipo de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, 32,1% das participantes garantiram serem acompanhadas, 22,4% disseram já ter feito e 26,3% admitiram nunca ter passado pelo processo psicoterapêutico.
Achados não surpreendem
“Os resultados não me surpreenderam porque estou há 14 anos trabalhando com este público, em diálogo estreito com este universo”, reconhece Mariana Bicalho, acrescentando que, na verdade, os números refletem uma realidade que ela já percebia. “Mas, curiosamente, esses dados surpreenderam as próprias participantes, que, ao participar da pesquisa, identificaram uma sobrecarga que, no dia a dia, vinha passando batido”, ressalta.
“Muitas me procuraram para dizer que, só ao se deparar com o questionário, se deram conta de que haviam se esquecido delas mesmas e estavam normalizando a exaustão. Algumas admitiram que ficaram assustadas”, comenta.
Em algum momento em sua experiência de maternagem, Mariana reconhece já ter se identificado com questões que a pesquisa revisita. Caso da sensação de esgotamento, que levou a empreendedora e community builder a fazer um pedido de dia das mães inusual à sua família: quis uma diária em um hotel, em BH mesmo, só para que pudesse passar alguns momentos consigo mesma.
“Ser mãe é maravilhoso, mas a maternidade vem com muitos desafios e precisamos falar sobre isso”, observa a criadora da plataforma Mommys. No grupo, diz ela, fica claro que temas como fraldas e mamadeiras aparecem, mas não são os assuntos predominantes. “Os desabafos, os ‘eu preciso de um abraço’, os posts do grito são super frequentes”, ressalta, reconhecendo já ter se sentido exausta a ponto de cair no choro.
Foi a partir da própria experiência, mas também ouvindo outras mães, que ela se deu conta de que precisava ter mais tempo para si mesma. “Aceitar isso é importante e está tudo bem se sentir assim. Isso não te faz mais ou menos mãe, isso não tem nada a ver com o amor que você sente pelos seus filhos”, Mariana.
Para ela, aliás, esse processo de aceitação está umbilicalmente ligado à desmistificação da maternagem. “E, se hoje não me identifico mais com essas questões, é porque venho trabalhando muito, comigo mesma e com outras mulheres, a importância do autocuidado”, assinala, pontuando que o Mommys foi criado justamente porque estava vivendo a angústia de pensar que olhar mais para si era um ato de egoísmo e que, sem reclamar, a gente deveria dar conta de tudo.
Políticas públicas
Além da necessidade de transformações culturais que possibilitem uma maternidade menos idealizada e sufocante, Sabrina Finamori, professora do departamento de antropologia e arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca ser fundamental que políticas públicas sejam implementadas para o enfrentamento desta realidade.
Para ela, ao imaginar formas de cuidar da saúde física, mental e emocional das mães, “é importante não se esquecer de ações públicas mais amplas, como as creches em tempo integral, que são fundamentais especialmente para a garantia de maior autonomia para mulheres de menor renda. A maioria delas, se não conta com uma rede de suporte, como mães, amigas ou vizinhas, que possam ficar com seus filhos pequenos, acaba fora do mercado de trabalho ou em trabalhos precários e informais”
O Tempo